terça-feira, 28 de junho de 2011

AutoAmor

Durante toda a minha infância e adolescência eu vivi à sombra das sombras de ser.  “Parecia”, inicialmente para não chocar, depois para fazer de conta que as coisas eram legitimamente como eu as enxergava.  Houve maus e péssimos momentos e eu poderia descrevê-los com a intimidade com que um amante descreveria o relevo do ventre ou o cheiro do colo de sua amada.
Muitas indesejáveis lembranças acumularam-se em minha mente e ergueram paredes de uma intransponível prisão, ano após ano, desde que vim ao mundo. Nada era digno de memória; nada, entretanto, eu conseguia apagar da memória.
Eu derrubaria uma floresta inteira se quisesse imprimir em folhas de papel minhas impressões negativas e minhas experiências dolorosas da juventude, mas isso não traria de volta a rigidez e elasticidade da minha pele, não apagaria as rugas do meu rosto, nem desfaria a curvatura dos meus ombros cansados.
Tenho um histórico de momentos ruins, um arquivo – verdadeiro amontoado – de dores e indiferenças.  Mas, o pior período da minha vida foi, sem dúvida, o que passei em São Paulo. 
Foram meses de insônias, angústias, solidão, desesperança, dor.  Mas, o pior de tudo nem eram as sensações ruins da depressão, como é de se supor. A parte mais difícil era, ao longo dos dias, manter a aparência de que estava tudo bem, de que eu estava feliz.  Nada era mais cruel do que passarem-se os dias sem escolhas, no convívio sempre complicado com minha irmã, que tinha uma instabilidade mórbida no humor, chegando ao ponto de passar semanas a fio recusando-se a me dirigir a palavra, isso sem que eu tivesse feito coisa alguma que lhe aborrecesse.
Era confuso para minha cabeça conceber que alguém poderia simplesmente parar de falar comigo no curso de uma conversa animada ou de alguma atividade doméstica e, sem explicação, emudecer, guardar um semblante de ira por longos períodos, me deixar sentindo a pior das solidões, que é quando estamos sós em meio à multidão.  E era como me sentia ao seu lado:  sozinha, embora na convivência com ela, as crianças, meu cunhado – ele sendo a única pessoa em quem eu percebia um pouco de calor.
Observando com justiça, nunca medi esforços em minha vida pelos outros.  Sempre que alguém tinha necessidade de ajuda, eu estava lá.  Se havia um trabalho a fazer, ou sobrinhos pra tomar conta, viagens, levar e trazer encomendas, cuidar dos pequenos pontos de negócio da família, todos sempre contavam comigo.  Ninguém jamais se perguntou se eu precisava de tempo pra mim, se eu precisava estudar pra alguma matéria em que tivesse dificuldades na escola, nem se aos nove ou dez anos de idade eu era criança demais pra tomar conta de outras crianças.  Ninguém se perguntava se eu tinha sonhos; ninguém queria saber se eu desejava fazer cursos naquele tempo em que estava ocupada, ajudando-os; não se dirigiam a mim pra viabilizar as coisas para as quais preparei meu coração a infância inteira...  Eles precisavam de ajuda, e eu aparecia, como um acessório sempre à mão, uma ferramenta da qual eles poderiam dispor a qualquer momento.
Eu era meio “invisível”.  Uma anônima dentro de casa, no seio da família. Ninguém reparava em mim, ninguém percebia meu teatro para manter aparências de felicidade.  Tenho depressão desde os tempos mais remotos da minha infância, mas eles estavam todos ocupados demais pra perceberem ou para se importarem.  Seus negócios, trabalhos, estudos, suas crias eram mais importantes do que eu!
Havia fins de tarde em que eu subia na laje da casa, permanecia lá até altas horas da noite, sem que ninguém percebesse minha falta.  Só bem tarde, mesmo, minha mãe começava a perguntar por mim, já que “conferia” se estávamos todos em casa, na hora de dormir.  Nem sei que tipo de preocupação ela tinha, mas sei que não era se eu estava infeliz, vendo o nascer e o poente das estrelas deitada na laje da cozinha.  Talvez se preocupasse se eu estava com alguém na rua, porque perder a virgindade ou aparecer grávida, ou ainda drogada, seria um escândalo – para eles!  Não pensavam em quanto EU poderia sofrer com essas coisas, ou quanto elas poderiam ser prazerosas pra mim, como era de se supor.  A vergonha da família estava em jogo, não a minha vida ou a de qualquer outra pessoa que estivesse sujeita às mesmas probabilidades.
Era assim que as coisas aconteciam.  Era assim que eu me percebia, refletida nas paredes – mesmo quando não havia espelhos pendurados nelas.  Porque me sentia espectro, forma indefinível, ser invisível, fantasma.
Senti, por toda a vida, a necessidade de ser útil.  A sensação de dependência da percepção dos outros era compensada por uma desesperada e constante tentativa de servir, de estar ao alcance da mão, de ser a ferramenta, o acessório, de valer a comida que comia, a roupa que vestia, os remédios, a despesa que dava.
Mas, foram esforços inúteis, ninguém os percebia, ninguém os valorizava.  E eu mergulhava em meus pensamentos, em minhas angústias, vivenciando a dor que me cortava as carnes por dentro, que me feriam a alma tão profunda e definitivamente, que por mais que eu tentasse me fazer merecedora do amor das pessoas que estavam à minha volta, o máximo que conseguia era a ilusão de ser útil.
Estive no fundo do poço inúmeras vezes. Porém, mais longos períodos do que nestas ocasiões, eu passei profundamente enterrada na lama que havia no fundo desse poço.  Minha alma se sentia fétida, atolada na imundície gelada que me imobilizava internamente, que me anulava de tal maneira que o fingimento de estar bem começou a ter que funcionar pra mim mesma, começou a enganar meus próprios sentidos, me fazendo crer que aquilo a que eu me acostumara era a vida real, era a naturalidade.  Tornou-se banal estar triste, deprimida.  Tornou-se pequeno o meu problema diante do turbilhão de pensamentos que me assaltavam durante minhas insones madrugadas.  Tornou-se merecimento o sofrimento, e por mais que eu estendesse meus esforços para me sentir parte da engrenagem da família, o máximo que conseguia perceber era que ser uma ferramenta que mantivesse a engrenagem funcionando já era grande coisa, já que eu certamente não devia “merecer” a compaixão do mundo, sequer.  Pedir amor era supérfluo, a essa altura.
A depressão é um verme:  aloja-se em nosso ventre, suga nossas energias, nossa alimentação, nossos sonhos.  Turva nossa visão, incapacita nossos sentidos para perceber o mundo ao redor em suas cores e formas reais. Faz com que nos sintamos pequenos demais, insignificantes. Faz-nos descer ao mais fundo de nossos abismos interiores, sepultando nossas almas em gélidas lápides sem epitáfios.  Faz-nos perder nossa identidade.
E foi em busca de uma nova identidade que nasceu uma outra eu, a que subia ao palco, todas as manhãs, para representar o papel de garotinha contente. 
Daquela forma eu podia ser Alice num país de maravilhas que só minha visão turva conseguia proporcionar ao meu espírito, quando na verdade ele despencava numa toca de coelho sem fundo por longas semanas, meses até.
Vivi personagens muitos, de rapunzéis – a deixar crescerem longas tranças de cabelos dourados, como raízes em busca de água – a belas adormecidas – deitadas em vitrines e rodeadas de flores, à espera de um príncipe encantado que um dia a viesse resgatar do seu sono de morte com um longo beijo.
Vivi, em tenra idade, o papel de mãe, cuidando de crianças que não pari, com o zelo que gostaria de ter sido tratada.
Assinei contratos invisíveis, nos quais me propunha a uma escravidão sem queixas, em troca de migalhas de entendimento e piedade.  E cumpri minha parte, sem jamais ter recebido minha paga.
Submeti-me a leis, regras que se diziam morais, vindas de bocas indecentes de pessoas que me usavam para suas vidas se tornarem mais fáceis, sem jamais terem conhecido meu coração, sem jamais terem me visto como pessoa, sem jamais terem enxergado humanidade em mim.  Submeti-me a normas e ditadores e me senti pressionada a escolhas que endossaram minha vida com culpas e remorsos tantos, a ponto de me fazerem desejar a dor para purgar a criatura vil que me fiz acreditar que era.
Meu nome e minha vida pesaram tanto sobre meus ombros, que o suicídio se tornou pensamento fútil a povoar minha cabeça.  Morte deixou de ser temor e passou a ser ideal.  Sair do corpo era tão primordial pra mim quanto não tornar a ele, mas minhas penas estavam sempre pela metade e, graças aos meus contratos invisíveis, nos quais tingi com sangue uma assinatura, permaneci ali, num infinito resgate de dívidas...
A depressão se apresentou com muitas faces ao longo desse tempo.  Ora era uma angústia sufocante, ora um carrossel em looping; ora era dor no peito, ora um vazio de desejos tamanho, que era indiferente viver ou sobreviver, morrer ou extinguir.  E vi o tempo passar, implacável, entre uma crise e outra, levando minha juventude embora, sugando de mim qualquer semente boa, para que em meus jardins não germinasse nada que não fosse espinho.
Ah, o tempo... Amigo e inimigo de todas as horas!
Amadureci.  E, junto com a idade, alguns conhecimentos surgiram, observações que fazia da vida – ao menos do que eu conhecia como tal, expectadora que me fiz da minha própria existência.
E comecei a sentir injustiça no que havia. Comecei a cobrar igualdades, a me sentir espoliada, prostituída... Comecei a me entender como vítima, mas isso se tornou ainda um pouco mais perigoso, porque a dor e a indiferença começaram a converterem-se em irritabilidade, inconstância, fugas, comportamentos arredios, grosseiros, até violentos.  Feri pessoas que não mereciam, no desejo de machucar quem me submeteu no passado; agredi quem finalmente me fez sentir gente, como o cachorro atropelado que morde a mão que o resgata na hora da agonia...
Nascer pessoa, crescer gente, entender-se desde sempre humano, deve ser uma experiência maravilhosa!  Mas, nascer sobressalente, crescer culpada e descobrir-se pessoa tarde demais nos faz revoltosos.  E foi assim que aconteceu comigo.
Atormentam-me culpas que carreguei desde a infância, até a minha vida adulta, como fantasmas arrastando correntes pela sala, enquanto, trancada no quarto, tento repousar a cabeça a cada noite.
Doem-me até o presente as mesmas dores dilacerantes que perfuravam minha garganta, rasgando-me de cima abaixo, dividindo-me em duas:  uma que ficava sob as tábuas, enquanto a outra brilhava sobre o palco da existência, em seus múltiplos personagens.
Difícil conviver com tanta confusão mental.  Ter lucidez, aprender, buscar, sonhar... São, todas essas, coisas às quais não fui apresentada na infância.  Aprendia maquinalmente, sem saber quem me ensinava as lições. E se, apesar de tudo, ainda surgissem sonhos, em muito pouco tempo eu os afogava no tanque de roupas sujas.  Não havia tempo nem espaço pra eles em minha rotina!
Amar foi a única coisa que preservei em meio a esse tumulto.  Guardei esse verbo como o Verbo Divino, longe de todos os males, rodeado e protegido pelos próprios espinhos que me feriam dentro dos meus jardins.  Deixei que permanecessem intactos os grandes amores e admirações que assisti passar ao longo da encarnação.
Hoje, busco nesses verbos uma nova conjugação da vida.  Não os dispenso, vivo deles, respiro-os.  Alimento meu espírito com seus frutos, bebo de sua fonte e sacio a sede de esperança que sempre tornou árido o meu ventre.  Cubro-os com flores e cuido que sempre haja adornos e perfume em cada um desses preciosos seres, entregando-me – não como escrava nem assinando pactos de sangue, mas fazendo-me melhor e melhor antes para mim mesma, a cada dia.  Resgatei-me da lama e banhei-me num rio de águas límpidas, me sentindo menos cansada e fétida, desanuviando a visão para poder enxergar as estrelas...
A sensação do autoamor é indescritível!
Amar-me a mim tem me feito vislumbrar um ponto de equilíbrio que antes nunca pensei existir.  Estabilizou a minha vida-viagem, eliminando os vertiginosos loopings impostos pela montanha russa em que me deixei arrastar por grande parte de minha existência.
Autoamor para mim significa resgate.  Significa não precisar que outros me enxerguem, já que eu mesma consigo me enxergar.  É fazer-me gente, mesmo quando isso represente romper antigos laços, rasgar antigos tratados.  Sugere-me acreditar em mim mesma, abrir portas e transpô-las corajosamente, perseguir causas, sonhar, querer mais a permanência física e a nitidez mental para compreender e sentir profundamente cada experiência nova.  Ser múltipla por dentro, sem precisar exteriorizar personagens.  Ter a coragem e a ousadia de acordar todas as manhãs e respirar, para me fazer humana e sublimar minhas conquistas cotidianas.  Ser autora de meus atos e escolhas, ter autonomia ao invés de culpas, ter prazer e dor na medida certa que nos é mister, à medida em que somos mais reais.
Foi bom ter sobrevivido às intempéries, às galeras e hienas esfomeadas que me arrancavam lascas da vida na carne e que corroíam o desejo de ser, nos ossos que, em meio às dificuldades, me sustentavam de pé.  Foi bom não ter levado os pensamentos suicidas à veracidade.  Foi muito bom, mesmo, ter encontrado a mim mesma e me estendido a mão para me resgatar dos braços robustos da morte.
Talvez pareça tarde, mas isso ainda acontece pelos restos de lama que ainda não consegui desencrostar de minha alma, tão densa e ressecada estava quando me banhei nas águas mornas do autoamor.  Então, às vezes, ainda surgem insônias e pesadelos, nos quais me vejo submissa a leis nas quais já não vejo o menor sentido ou utilidade.  Ainda me vêm pensamentos e reações sobre os quais não consegui total controle, e me vejo “mordendo” as mãos que me ajudam a levantar e caminhar, depois de tantos desastres, depois de ter sido tantas vezes violentada, atropelada, esmagada...
Mas já consigo ver luz em meio a essas madrugadas de neblina, já me sinto menos desprotegida da friagem noturna.  Meu pulmão já não dói quando respiro, nem me permito ser dilacerada pelas lâminas afiadas que outrora descarnavam-me, sem dó.
Busco sentido para a vida, busco respostas e também novas perguntas.  Recuso-me assistir ao passar dos fatos sem participação.  Deixo-me marcar pela vida, mas deixo também marcas do que sou em essência, sempre que consigo agarrar a possibilidade.  Não me submeto ao que é possível, simplesmente, mas vou até o limite das minhas forças para alcançar o que antes era inatingível.  Não me permito a inércia, nem me curvo aos comandos e leis alheias, que não me têm nenhuma serventia.
Viver tornou-se imperativo.  Amar tornou-se vital.  Liberdade tornou-se amorosa condição para todas essas cousas.
Quando serei eu, na totalidade? Sinceramente, não sei.  Nem me preocupa saber.
Hoje, a importância da vida está na busca, não na finalidade; está nos meios, não em metas traçadas ou projetos em folhas de papel que a chuva facilmente destruiria, apagando as linhas; está em ser, não em parecer.
Como diz o poeta, “A sensação de estar feliz e estar feliz, a nada se compara!”*
E, um dia de cada vez, eu mais que sobrevivo: eu conquisto-me e reconquisto-me pelo autoamor.
É a melhor fase de mim mesma.

DePrê  =(
Jun 28, 2011 – 3:02pm


* Junior Almeida, cantor e compositor alagoano


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